Perseguindo a besta de um bilhão de metros quadrados – Por Tom Wolfe (1989) [tradução]

Tom Wolfe blog de contos

Imagem | Arturo Espinosa via Flickr CC

Um manifesto literário para o novo romance social

Tradução livre | Eder Capobianco

Publicado originalmente da edição de novembro de 1989 na revista Harper’s Magazine.

Posso ser perdoado, se tomar como meu texto a sexta página do quarto capítulo de A fogueira das Vaidades? O personagem principal do romance, Sherman McCoy, está dirigindo sobre a ponte Triborough, em Nova Iorque, em seu Mercedes, com sua namorada de 26 anos, não sua esposa de quarenta, no assento de couro marrom ao lado dele, e ele olha triunfalmente para a esquerda em direção à ilha de Manhattan. “As torres estavam tão apertadas que ele podia sentir a massa e o peso estupendo. Basta pensar nos milhões, em todo o mundo, que ansiavam por estar naquela ilha, naquelas torres, naquelas ruas estreitas! Lá estava a Roma, a Paris, a Londres do século XX, a cidade da ambição, a densa rocha magnética, o destino irresistível de todos aqueles que insistem em estar onde as coisas estão acontecendo…”

Para mim, a ideia de escrever um romance sobre esta assombrosa metrópole, um grande romance, esmiuçando o máximo de pretextos sobre Nova Iorque que você puder, foi a mais tentadora, a mais desafiadora, e a ideia mais óbvia que um escritor estadunidense poderia ter. Fiz um primeiro voto de tentar em 1968, colocado que o que eu tinha em mente, então, era um romance de não-ficção, para usar um termo muito discutido do período. Eu já tinha escrito um, The electric kool-aid acid test, sobre o movimento psicodélico, ou hippie, e comecei a me deixar levar por algumas bravas especulações sobre a não-ficção como forma de arte. Estas estavam, eventualmente, registradas em um livro chamado The new journalism. Fora este registro, entretanto, sozinho no meu apartamento na Rua 58, eu estava preocupado que alguém lá fora estivesse escrevendo um grande romance ficcional realista sobre a experiência hippie que soprara The electric kool-aid acid test para fora da água. Alguém? Pode haver tropas deles. Além do que, entre os hippies haviam muitos bem educados e presumivelmente, para não falar reconhecidamente, criativos. Mas um, dois, três, quatro anos se passaram e, para meu alívio, e então minha perplexidade, estes romances nunca apareceram. (E ainda hoje permanecem não escritos.) 

Entretanto, me voltei à proposta de um romance não-ficcional sobre Nova Iorque. Como eu via, tal livro deveria ser um romance da cidade, no sentido que Balzac e Zola tinham escrito romances de Paris, Dickens e Thackeray tinham escrito romances de Londres, com a cidade sempre em primeiro plano, exercendo sua pressão implacável nas almas de seus habitantes. Meu modelo imediato era Vanity fair, de Thackeray. Thackeray e Dickens tinham vivido na primeira grande era das metrópoles. Agora, um século depois, em 1960, certas forças poderosas tinha convergido para criar uma segunda era. O boom econômico, que tinha começado em meados da II Guerra Mundial, aumentou na década de 1960 mesmo sem uma recessão branda. Os tempos de esplendor criaram um senso de imunidade, e os padrões que estavam em vigor para a geração do milênio eram varridos de lado com alegria e um divertido abandono. Um resultado foi, a chamada, revolução sexual, qual sempre pensei ter sido um termo bastante primitivo para o tétrico carnaval que realmente aconteceu.

Indiretamente, o boom também desencadeou outra coisa: o evidente conflito racial. Sentimentos ruins vinham fervendo em fogo baixo nas cidades desde que a grande migração das zonas rurais do sul tinham começado, nos anos de 1920. Mas, em 1965, uma série de distúrbios raciais eclodiram, começando com os distúrbios no Harlem em 1964 e os distúrbios de Watts, em Los Angeles, em 1965, se movendo para Detroit em 1967 e atingindo seu auge em Washington e Chicago em 1968. Estas foram revoltas que só os anos de 1960 poderiam ter produzidos. Nos anos 1960 o governo federal tinha criado a Guerra Contra Pobreza, no cerne do qual não havia esmolas para os pobres, mas sim os esquemas chamados Programas de Ação Comunitárias. PACs eram uma coisa nova na história da ciência política. Eram convites oficiais do governo para as pessoas nas favelas melhorarem sua situação e se rebelarem contra o establishment, incluindo o próprio governo. O governo forneceria o dinheiro, a sede e os assessores. Então as pessoas nas favelas agradeceram. Os distúrbios foram, meramente, a mais sensacional forma que a estratégia tomou, entretanto. A forma mais costumeira era o confronto. Confronto era o termo dos anos 1960. Não foi mera coincidência que o mais violento dos grupos de confronto da década de 1960, o Partido dos Panteras Negras da América, elaborou seu programa de dez pontos no centro da pobreza de North Oakland. Era para isso que o centro de pobreza estava lá.

Esse era o pano de fundo de um dia de janeiro em 1970, quando decidi participar de uma festa que Leonard Bernstein, e sua esposa, Felícia, estavam dando aos Panteras Negras em seu apartamento na Park Avenue, na Rua 79. Eu calculava que poderia haver algum material para minha não-ficção Vanity fair sobre Nova Iorque. Não sabia de metade disso. Foi nesta festa que um marechal de campo dos Panteras Negras se ergueu ao lado do piano norte – havia também um piano sul – na sala de Leonard Bernstein e declamou o programa de dez pontos dos Panteras para uma sala cheia de celebridades e socialites, que com a nostalgie de la boue, entreteve uma visão de futuro na qual, depois da revolução, não haveria mais nada como um apartamento de dois andares e treze cômodos na Park Avenue, com pianos de cauda duplos na sala de estar, para uma família.

Tudo o que eu procurava era material para um capítulo de um romance de não-ficção, como disse. Mas a festa foi um set perfeito que não consegui segurar. Escrevi um relato da noite para a revista New Iorque intitulado “Radical chic” e, como um complemento, um artigo sobre os confrontos que a Guerra Contra Pobreza gerou em San Francisco, “Mau-Mauing the flak catchers”, publicado novamente como um livro no outono de 1970. Mais uma vez me preparei e esperei pelos grandes romances realistas, que certamente seriam escritos sobre esse fenômeno que tinha desempenhado um papel tão importante na vida estadunidense no final dos anos de 1960, e início dos anos 1970: conflitos raciais nas cidades. Mais uma vez os anos começaram a rolar, e esses romances nunca apareceram.

Desta vez, porém, meu alívio não foi muito profundo. Eu ainda não tinha escrito o que seria meu grande livro sobre Nova Iorque. Tinha simplesmente desistido de tentar. Em 1972 me afastei um pouco mais. Fui ao Cabo Canaveral para cobrir o lançamento da Apollo 17, a última missão para lua, para a Rolling Stones. Acabei escrevendo uma série de quatro partes sobre os astronautas, então decidi passar os próximos cinco ou seis meses expandindo o material para um livro. Os cinco ou seis meses se esticaram para um ano, dezoito meses, dois anos, e comecei a ver sobre meus ombros. Truman Capote, por exemplo, deixou claro que estava trabalhando num grande romance sobre Nova Iorque, intitulado Answered prayers. Sem dúvida havia outros também. O material era inacreditavelmente rico, e ficava mais rico a cada dia.

Outro ano escorreu….e, milagrosamente, nenhum livro apareceu.

Agora, eu parava e olhava sobre isso, tentando descobrir o que estava, de fato, acontecendo no mundo da ficção estadunidense. Não estava sozinho, como se viu. Metade dos publishers ao longo da Madison Avenue – naquele tempo as editoras ainda podiam pagar a Madison Avenue – tinham seus narizes pressionados contra suas paredes de vidros temperados examinando a cidade de bilhões de metros quadrados para se aproximar de um jovem romancista que, obviamente, iria trazer para eles os grandes romances dos confrontos raciais, do movimento hippie, da Nova Esquerda, o boom de Wall Street, a revolução sexual, a guerra do Vietnã. Mas estas criaturas, ao que parece, não existem mais.

O que importava era o estranho fato de que os jovens com sérias ambições literárias não estavam interessados na metrópole, grandes cidades ou qualquer rica fatia da vida contemporânea. Nos quinze anos anteriores, enquanto eu estava imerso no jornalismo, um dos mais curiosos capítulos da história literária estadunidense tinha começado. (E não acabou ainda.) A história por vezes é bizarra e hilária, e um dia algum candidato sortudo a doutorando, com perseverança, como um Huizinga ou um Hauser, me fará justiça. Não posso oferecer mais que este esboço. 

Depois da II Guerra Mundial, no final dos anos 1940, os intelectuais estadunidenses começaram a reviver um sonho que tinha brilhado brevemente nos anos de 1920. Eles criaram um conjunto de intelligentsia nativa no modelo francês ou inglês, uma aristocracia intelectual – não afiliada socialmente, além de distinções de classe – ativa na política e nas artes. Nas artes, seu público seria, inevitavelmente, uma pequena minoria de pessoas cultivadas, em oposição à multidão, que desejava apenas ser divertida, ou ter certeza que eram “cultos”. Agora, se precisamos editar, a multidão era mais conhecida como classe média.

Entre as idéias européias da moda que começavam a circular estava a da “morte do romance”, pela qual era conhecido o romance realista. Escrevendo em 1948, Lionel Trilling deu a esta noção um marxismo tardio misturado que George Steiner, entre outros, elaboraria depois. O romance realista, em sua ilusória aparência, era o filho literário da burguesia industrial do século XIX. Era um pedaço da vida, um corte transversal, que fornecia uma imagem verdadeira e poderosa dos indivíduos e da sociedade – desde que a ordem burguesa e o velho sistema de classes estivessem firmemente estabelecidos. Mas, agora que a burguesia estava em estado de “crise e derrota parcial” (termos de Steiner), e o velho sistema de classes estava desmoronando, o romance realista era inútil. O que poderia ser mais fútil que um corte transversal de fragmentos desintegrados?

A verdade era que, como Arnold Hauser tinha feito a duras penas para demonstrar em The social history of art, a intelligentsia sempre desdenhou o romance realista – uma forma que se afunda tão entusiasticamente na sujeira da rotina da vida, e nos segredos sujos a despeito das aulas que, ainda pior, é tão facilmente entendido e, obviamente, apreciado pela multidão, i.e., a classe média. Na Inglaterra Vitoriana, a intelligentsia considerava Dickens como “o autor do público não educado, indiscriminado”. Foi necessário um abismo de tempo – oitenta anos, de fato – para separar sua obra de seu ambiente vulgar, para que Dickens pudesse ser canonizado nos círculos da literatura britânica. A intelligentsia sempre preferiu formas mais refinadas de ficção, como o favorito intelectual francês de muito tempo, o romance psicológico. 

No início dos anos 1960, a noção de morte do romance realista havia sido captada entre jovens escritores estadunidenses com a força de uma revelação. Esta foi uma reviravolta extraordinária. Foi apenas ontem, na década de 1930, que o grande romance realista, com sua ampla varredura social, colocou a literatura americana no cenário mundial pela primeira vez. Em 1930, Sinclair Lewis, um romancista realista que usou técnicas de reportagem tão completas quanto as de Zola, tornou-se o primeiro escritor americano a ganhar o Prêmio Nobel. Em seu discurso de aceitação, ele convocou seus colegas escritores a dar aos Estados Unidos “uma literatura digna de sua vastidão” e, na verdade, quatro dos próximos cinco americanos a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura – Pearl Buck, William Faulkner, Ernest Hemingway, e John Steinbeck – eram romancistas realistas. (O quinto foi Eugene O’Neill). Aliás, os novos romancistas mais conceituados do período imediato ao pós-guerra – James Jones, Norman Mailer, Irwin Shaw, Willian Styron e Calder Willingham – eram todos realistas.

No entanto, em 1962, quando Steinbeck ganhou o Prêmio Nobel, jovens escritores, e intelectuais em geral, consideravam que ele e sua abordagem do romance eram um constrangimento. Pearl Buck foi ainda pior, e Lewis não foi muito melhor. Faulkner e Hemingway ainda mereciam respeito, mas era o respeito que você dá aos velhos que fizeram o melhor que puderam com o que sabiam em seu tempo. Eles eram “quadrados” (termo de John Gardner), que realmente achavam que você poderia pegar a vida real e espalhá-la pelas páginas de um livro. Eles nunca compreenderam o fato de que um romance é um jogo literário sublime.

Todos os jovens escritores sérios – sério significa aqueles que miram o prestígio literário – entendiam destas coisas, e estavam desmantelando o romance realista tão rápido quanto poderiam pensar em maneiras de fazê-lo. A linha divisória foi no ano de 1960. Escritores que entraram na faculdade depois de 1960 … entenderam. Para um jovem escritor sério se assentar no realismo depois de 1960 exigia contrariedade, e coragem.

Escritores que entraram na faculdade antes de 1960, tais como Saul Bellow, Robert Stone e John Updike, achavam difícil desistir do realismo, mas, muitos outros foram pegos no meio, e entre, esse período. Eles não sabiam por qual caminho voltar. Por exemplo, Philip Roth, graduado em 1954 em Bucknell, venceu o National Book Award em 1960, com 27 anos, com uma coleção intitulada Goodbye, Columbus. O título da peça era um brilhante conto de boas condutas – brilhante … mas, alas, altamente realista. Em 1961, Roth estava tendo pensamentos segundos. Ele fez uma declaração que teve impacto incrível nos outros jovens escritores. Nós agora vivemos em uma era, ele disse, na qual a imaginação do romancista está indefesa diante do que ele sabe que pode ler no jornal amanhã de manhã. “A realidade está continuamente superando nossos talentos, e a cultura lança diariamente formas que são a inveja de qualquer romancista.”

Ainda hoje – talvez especialmente hoje – qualquer um, escritor ou não, pode compadecer-se. Que romancista ousaria imaginar um enredo no qual, digamos, um evangelista de televisão sulista tem um encontro em um motel com uma secretária de igreja da Babilônia, Nova Iorque – “Você precisava fazer isso na Babilônia? – e está arruinado ao ponto onde ele tem que vender todos os seus bens mundanos em um leilão, incluindo sua casa de cachorro com ar condicionado – casa de cachorro com ar condicionado? – em que ele é chamado de “decadente menino topete” por um segundo evangelista de televisão, que, nós logo descobriremos, tem penteado seu pouco cabelo loiro a frente da testa, e usa tiaras para se disfarçar, quando vai em móteis com colchão d’água, em Louisiana, com prostitutas da zona de combate – Oh, vamos lá – sugerindo à um terceiro evangelista de televisão, que está seriamente sendo considerado para nomeação presidencial Republicana, para acusar que a maldita evidência vazou para imprensa pelo vice-presidente do Estados Unidos da América…enquanto, todavia, a citada secretária de igreja tinha mostrado seus peitos para fotógrafos, e se tornado uma celebridade internacional que tinha ido viver feliz para sempre em um castelo conhecido como Mansão Playboy…e seu, outrora, companheiro de encontros, o evangelista n° 1, foi visto pela última vez escondido em posição fetal embaixo de seu sofá em Charlotte, Carolina do Norte…

Que romancista ousaria sonhar com coisas tão malucas, e então pedir que você suspendesse sua descrença?

A lição que uma geração de jovens escritores sérios aprenderam do lamento de Roth foi que era hora de desviar os olhos. Tentar um romance realista com o escopo de Balzac, Zola ou Lewis era absurdos. No meio dos anos de 1960 a convicção não era, meramente, que o romance realista não era mais possível, mas que a vida estadunidense em si não merecia o termo real. A vida estadunidense era caótica, fragmentada, randômica, descontinuada; em uma palavra, absurda. Escritores nos programas de escrita criativa das universidades tiveram longas discussões fenomenológicas, nas quais decidiram que o ato de escrever palavras em uma paǵina era o real, e o então chamado mundo real estadunidense era a ficção, exigindo a suspensão da descrença. O então chamado mundo real se tornou a frase favorita. 

Novos tipos de romances vieram em ondas, cada um tentando estabelecer uma posição avant-garde além do realismo. Havia romances do absurdo, romances mágicos realistas, e romances de Disjunção Racial (termo do romancista e crítico Robert Towers), nos quais eventos plausíveis são combinados de maneiras fantásticas ou estranhas, frequentemente resultando em terríveis catástrofes que eram disputadas por risos de um modo irônico. Ironia era a atitude suprema, e em nenhum outro lugar mais que nos romances Puppet-Master, uma categoria que, frequentemente, se sobrepunha às outras. Os Puppet-Masters adoravam a teoria de que o romance era, primeiro e principalmente, um jogo literário, palavras em uma página sendo manipuladas pelo autor. Ronald Sukenick, autor do altamente premiado, em 1968, romance chamado Up, diria o que ele parecia enquanto estava escrevendo as palavras que você estava lendo naquele momento. Para começar você é informado de que ele estava completamente pelado. As vezes ele diz a você que tinha riscado aquela parte que você está lendo, e mudado. Então ele te dá uma nova versão. Em uma história chamada “A morte do romance”, e continha dizendo, à la Samuel Beckett, “não posso continuar”. Então ele estimula si mesmo, “continue”, e em frente ele vai. E, no final de Up, ele te diz que nenhum dos personagens era real: “Só criei isso conforme seguia em frente.”

O mestre das marionetes toma para si contar suas ficções, à maneira de Jorge Luis Borges, que falava de suas ficciones. Borges, um argentino, era um dos deuses da nova geração. De acordo com os anseios cosmopolitas da intelligentsia nativa, todos os deuses agora vem do exterior: Borges, Nabokov, Beckett, Pinter, Kundera, Calvino, García Marquez, e, acima de todos, Kafka; houve uma erupção de histórias com personagens chamados H ou V ou K ou T ou P (mas, por alguma razão, nenhum chamado A, B, D ou E). Logo chegou a hora na qual professores de escrita criativa, como Johns Hopkins, elevaram Tolstoy como o mestre dos romances – e foi visto por seus jovens acusadores como um tanto comovidoramente antiquado. Como um deles, Frederick Barthelme, diria mais tarde, “Ele falou com Leo Tolstoy quando estivemos aqui com Laurence Sterne, Franz Kafka, Italo Calvino e Gabriel García Marquez. De fato, Gabriel García Marquez já estava acabado para eles.”

Na década de 1970 houve uma precipitada corrida para se livrar não só do realismo, mas de tudo que pudesse ser associado a ele. Um dos mais elogiados da nova geração, John Hawkes, disse, “comecei a escrever ficção supondo que os principais inimigos do romance eram enredo, personagem, cenário e tema”. O grupo mais radical, os Neo-fabulistas, decidiram por voltar às origens primitivas da ficção, de volta aos tempos felizes, antes do realismo e toda sua contaminação, de volta ao mito, fábula e lenda. Ambos, John Gardner e John Irving, começaram por esta veia, mas o inigualável líder foi John Barth, que escreveu uma coleção de três romances chamado Chimera, contando as novas aventuras de Perseus e Andrômeda, entre outros personagens da mitologia grega. Chimera venceu o National Book Award de 1972.

Outros Neo-fabulistas escreveram fábulas modernas, à la Kafka, na quais as ações, se alguma, aconteciam em um local não específico. Você não poderia dizer nem que hemisfério era. Era alguma coisa desconhecida, um terreno elementar – o deserto, o mato, o mar aberto, as terras nevadas. Os personagens não tinham algo por detrás. Ele vinham de lugar nenhum. Eles não usavam um discurso realista. Nada que eles dissessem, ou fizessem, ou possuissem, indicava alguma classe ou origem étnica. Acima de todo, os Neo-fabulistas evitavam todos os grandes, e óbvios, sentimentos e emoções, com os quais o romance realista, com suas terríveis cenas Little Nell, eram especialistas. Anestesia perfeita: esse era o ingresso, mesmo nas cenas de morte. A solidão anestésica tornou-se um dos grandes motes dos romances sérios da década de 1970. Os Minimalistas, também conhecidos como realistas do K-Mart, escreveram sobre situações reais, mas minúsculas, domesticamente minúsculas, em sua maior parte, costumeiramente em cenários Rurais de Cisternas Sépticas Rústicas, em uma prosa impassível composta de insinceras, e curtas, sentenças simples – com as emoções anestesiadas, com uma injeção de Novocaína. Minha abertura minimalista favorita vem de um conto de Robert Coover: “Para começar, ele foi morar sozinho em uma ilha e atirou em si mesmo”. 

Muitos daqueles escritores eram brilhantes. Eles eram virtuosos. Eles conseguiam fazer coisas dentro de estreitos limites que haviam estabelecidos para si mesmos, que eram mais inteligentes e divertidas que qualquer um pudesse imaginar. Mas o que era esta ilha solitária para qual eles tinha se mudado? Afinal, eles, como eu, por acaso, estavam vivos naquele que foi, para o melhor e para o pior, o século dos Estados Unidos, o século no qual nos tornamos a potência militar mais poderosa de toda história, capazes de explodir o mundo girando duas chaves cilíndricas em um silo de mísseis, mas também capazes, uma vez difundida, de escapar para as estrelas em espaçonaves. Nós estávamos vivos desde o primeiro momento, desde a aurora dos tempos em que o homem finalmente conseguiu romper os laços da gravidade da Terra e explorar o resto do universo. E, no ápice disso, nós tínhamos criado uma abundância que alcançou o nível dos mecânicos e comerciantes numa escala que teria feito o Rei Sol piscar, de modo que, em qualquer noite, um eletricista Neo-fabulista ou Minimalista, ou mecânico de ar-condicionado, ou reparador de alarmes, podia muito bem estar na Ilha de São Cristóvão, Barbados ou Puerto Vallarta, vestindo uma camisetinha Harry Belafonte, aberta no esterno para melhor revelar as correntes de ouro tilintando nos cabelos do peito, enquanto e ele e sua terceira esposa sentam em um terraço e tomam um pouco de água de marca antes do jantar…

Que banquete foi espalhado a frente de cada escritor estadunidense! Como poderia algum escritor resistir a se ligar à isso? Eu não conseguiria.

Em 1979, depois de ter finalmente terminado meu livro sobre os astronautas, The right stuff, retornei, finalmente, à idéia de um romance sobre Nova Iorque. Agora tinha decidido que o livro não seria uma não-ficção, mas uma ficção. Parte disso, suponho, era a curiosidade, ou melhor dizendo, a questão que repreendia todo escritor que tinha feito a escolha de experimentar a não-ficção nos últimos dez ou quinze anos: Você está, simplesmente, se esquivando do grande desafio – O Romance? Conscientemente, queria provar um ponto. Queria cumprir uma previsão que fiz na introdução de The new journalism em 1973; ou seja, que o futuro do romance de ficção estaria em um realismo altamente detalhado, baseado em reportagens, um realismo mais completo que qualquer tentativa atual, um realismo que retrataria o indivíduo em uma relação íntima e indissolúvel com a sociedade ao seu redor. 

Um dos axiomas da teoria literária dos anos de 1970 era que o realismo foi “apenas outro artifício formal, não um método permanente para lidar com a experiência” (nas palavras do editor da Partisan Review, William Phillips). Eu estava convencido, então – e estou cada vez mais fortemente convencido agora – que, precisamente, o oposto disso era verdade. A introdução do realismo na literatura no século XVIII por Richardson, Fielding e Smollett foi como a introdução da eletricidade na engenharia. Não foi apenas outro dispositivo. Os efeitos nas emoções de um realismo cotidiano como o de Richardson era algo que nunca tinha sido concebido antes. Foi o realismo que criou qualidades como “absorvente” ou “emocionante”, que é peculiar ao romance, qualidades que fazer o leitor sentir que foi puxado não só para o cenário da história, mas também para as mentes e sistema nervoso central dos personagens. Ninguém jamais foi levado às lágrimas por ler os infelizes destinos de heróis e heroínas em Homero, Sófocles, Molière, Racine, Sydney, Spenser ou Shakespeare. No entanto, até mesmo o impecável Lorde Jeffrey, editor da Edinburgh Review, confessou ter chorado – choramingou, bufou, fungou e suspirou – pela morte de Little Nell em The old curiosity shop. Para os escritores renunciarem a este tipo de poder na busca de um tipo mais atualizado de ficção – é como se um engenheiro se dispusesse a desenvolver uma máquina tecnológica mais sofisticada que todas as outras descartando o princípio da eletricidade, numa área em que ela tem sido usada ad nauseam por uns cem anos. 

Uma das especialidades do romance realista, de Richardson para frente, era a de demonstrar a influência da sociedade até nos aspectos mais pessoais da vida do indivíduo. Lionel Trilling estava certo quando disse, em 1948, que foram produzidos grandes personagens no romance do século XIX europeu pelo retrato dos “traços de classes modificados pela personalidade”. Mas, ele prosseguiu argumentando que a velha estrutura de classes já tinha se desintegrado, particularmente nos Estados Unidos, tornando a técnica inútil. Novamente, diria que esse é precisamente o oposto ao caso. Se nós substituirmos por classe, na formulação de Trilling, o amplo termo status, essa técnica nunca foi tão essencial para retratar a vida mais íntima do indivíduo. Isso é, acima de tudo, verdade quando o assunto é as cidades modernas. Parece-me loucura acreditar que você pode retratar o indivíduo na cidade hoje sem também retratar a própria cidade.

Perguntado uma vez sobre três romances que ele mais recomendaria para um estudante de escrita criativa, Faulkner disse (ou dizem que disse): “Anna Karenina, Anna Karenina e Anna Karenina”. E o que está no cerne não apenas dos dramas privados, mas também da própria psicologia de Anna Karenina? É o conceito de Tolstoi do coração em guerra com as estruturas da sociedade. Os dramas de Anna, Vronsky, Karenin, Levin e Kitty não seriam nada além de romances lentos sem o panorama da sociedade russa contra a qual Tolstoi os coloca. Os atos irracionais eletrizantes dos personagens são os atos de corações trazidos a um precipícios, desesperados pela pressão da sociedade.

Se Trilling estivesse aqui ele sem dúvida diria, mas é claro: “traços de classe modificados pela personalidade”. Esses são personagens substanciais (substancial era um dos termos favoritas de Trilling), precisamente porque a sociedade russa dos dias de Tolstói era tão claramente definida pelas classes sociais, cada uma com sua própria distinção de cultura e tradição. Hoje, em Nova Iorque, Trilling poderia argumentar que Anna iria morar com Vronsky, e as pessoas de seu meio social devidamente mudariam seus livros de endereços Scully & Scully; e a chegada de um bebê, se ele escolhessem ter um; iria ocasionar não mais que um sorrisinho nas colunas de fofoca. Para qual eu diria, se muito. A estrutura de status da sociedade mudou, mas não desapareceu por um momento. Ela fornece um número infinito de novas agonias para as Annas e Vronskys do Upper East Side, e, tão longe quanto pode ir, para Leningrado. Quem duvida disso precisa apenas conhecê-las. 

A sociedade estadunidense, hoje, é mais ou menos tão caótica, randômica, descontinuada ou disparatada quanto a sociedade russa, francesa ou britânica um século atrás, não importa o quão conveniente para o escritor é pensar nisso. É simplesmente mais variado, complicado e difícil de definir. No prólogo de A fogueira das vaidades o prefeito de Nova Iorque entrega um solilóquio em fluxo de consciência enquanto está sendo encaminhado para um palco no Harlem por um grupo de manifestantes. Ele pensa em todos os brancos ricos nova iorquinos assistindo aquilo em seus televisores dentro de seus isolados apartamentos populares. “Você realmente pensa que essa será sua cidade por mais tempo? Abram seus olhos! A grande cidade do século XX! Você acha que dinheiro pode manter isso seu? Desçam de suas inchadas corporações, seus negócios associados e advogados de fusões! É o terceiro mundo lá em baixo! Porto-riquenhos, indianos ocidentais, haitianos, dominicanos, cubanos, colombiano, hondurenhos, coreanos, chineses, tailandeses, vietnamitas, equatorianos, panamenhos, filipinos, albaneses, senegaleses e afro-americanos! Vá visitar as fronteiras, medrosos! Morningside Heights, Parque St. Nicholas, Washington Heights, Fort Tryonpor qué pagar más! O Bronx – o Bronx está acabado para você!” – e por aí continuou. Nova Iorque, e praticamente todas as grandes cidades dos Estados Unidos, estão passando por uma mudança profunda. A quarta grande onda de imigrantes – essa da Ásia, norte da África, América Latina e Caribe – está jorrando agora. Dentro de dez anos o poder político, na maioria das cidades estadunidenses, terá passado para as maiorias não-brancas. Isso torna essas cidades incompreensíveis, fragmentadas além do alcance de toda lógica, absurdas, inúteis de se olhar no sentido literário? Não, na minha opinião. Simplesmente torna a tarefa do escritor mais difícil se ele quiser conhecer o que realmente pressiona o coração do indivíduo, branco ou não-branco, que vive na metrópole na última década do século XX.

Essa tarefa, como eu vejo, inevitavelmente envolve a reportagem, que considero o recurso mais valioso, e menos compreendido, de qualquer escritor com ambições exaltadas, seja pelo meio escrito, filme, fita ou palco. Jovens escritores estão constantemente dizendo: “Escreva sobre o que você conhece”. Não há nada errado com o esta regra como ponto de partida, mas ela parece se ampliar rapidamente em uma máxima não dita: a única experiência válida é a experiência pessoal.

Emerson disse que cada pessoa tinha uma grande autobiografia para escrever, apenas se ele entender quão verdadeiramente única é sua própria experiência. Mas, ele não disse que cada pessoa tinha duas grande autobiografias para escrever. Dickens, Dostoievski, Balzac, Zola e Sinclair Lewis supuseram que o romancista tinha que ir além de sua experiência pessoal e seguir à sociedade como um repórter. Zola chamou isso de documentação, e suas expedições documentadas às favelas, minas de carvão, corridas, pardieiros, lojas de departamento, mercadões, redações de jornais, celeiros, pátios ferroviários, e tabuleiros, com caderno e caneta nas mãos, se tornaram lendárias. Para escrever Elmer Gantry, o retrato não apenas de um evangelista corrupto, mas também de todo clero Protestante, em um momento que eles ainda definem o tom moral dos Estados Unidos, Lewis abandonou sua casa em New England e se mudou para Kansas City. Ele organizou grupos de estudos bíblicos para clérigos, proferiu sermões dos púlpitos dos pregadores nas férias de verão, participou de reuniões e palestras em tendas Chautauqua, conferências de igrejas e seminários de classes, enquanto fazia anotações em cartões de 5x8in.  

Foi através deste processo, documentação, que Lewis passou a colher a história de Jim Bakker por sessenta anos – e tornou-a totalmente plausível, histórica e psicologicamente, numa ficção. Me refiro aos dois últimos capítulos de Elmer Gantry. Nos vemos Elmer, o grande evangelista, ser flagrado em um encontro com…a secretária da igreja (Hettie Dowler é o seu nome)…que acaba por ser aliada de um advogado safado…e os dois se apresentam a Elmer com uma robusta e silenciadora demanda por dinheiro, qual ele está muito ansioso para pagar…com a ajuda dos amigos, entretanto, Elmer consegue virar a mesa, e é absolvido e justificado aos olhos da humanidade e da imprensa. Na página final, nós vemos Elmer de joelho ao lado do púlpito, num domingo de manhã, diante de uma casa lotada, com o olhar erguido para o céu com as mãos pressionadas juntas, ao modo Albrecht Dürer, lágrimas escorrendo pelo seu rosto, aos gritos, agradecendo a Deus por entregá-lo às víboras; Quando o livro termina, ele olha em direção ao coro e vislumbra além, “uma menina com tornozelos charmosos e olhos vivos…”

Foi este relato que fez Lewis o mais altamente conceituado romancista estadunidense da década de 1920? Certamente não por si só. Mas, foi o material que ele encontrou através das reportagens que habilitaram Lewis a exercer uma variedade tão rica de suas percepções, muitas delas excepcionalmente sutis, de dentro da psique de homens e mulheres, e de dentro da estrutura de status da sociedade. Tendo dito isto, vou agora revelar uma coisa que praticamente todo escritor tem experienciado – e nenhum, até onde sei, jamais falou sobre. O jovem que decide se tornar um escritor porque tem um tema, ou um ensaio, em mente, porque ele tem “alguma coisa para dizer”, é um pássaro raro. A maioria toma esta decisão porque percebem que tem uma certa facilidade musical com as palavras. Desde que a poesia é a linguagem da música, os jovens poetas de destaque não são raros. À medida que envelhecem, no entanto, nossos jovens gênios continuam investigando esse maldito problema do material, sobre o que escrever, já que agora eles percebem que a principal arena da literatura é a prosa, tanto na ficção como no ensaio. Mesmo assim, eles mantém as coisas em proporção. Eles dizem para si mesmos que 95% dos gênios literários são talentos únicos que estão seguros dentros de algum tipo de lugar pequeno dentro de seus crânios, e 5% é o material, o barro que seu talento irá moldar.

Me lembro de passar por este estágio sozinho. Na faculdade, em Washington e Lee, decidi que iria escrever prosas cristalinas. Essa era a palavra: cristalina. Seria uma prosa tão eterna, atemporal, requintada, elevada e deslumbrantemente transparente como Scarlatti, em seu momento mais sublime. Iria falar do século XX tão lucidamente quanto eu próprio. (Estava, naturalmente, interessado em ouvir, anos depois, que Iris Murdoch tinha sonhado com a mesma qualidade e escolhido a mesma palavra, cristalina, num ponto similar de sua vida.) Na pós-graduação em Yale me deparei com livros de retórica elizabetana, no qual isolaram, nas minhas contas, 444 figuras de linguagem, cobrindo todas as formas concebíveis de jogo de palavras. Ao analisar as prosas dos escritores que admiro – de Quincey, me lembro, era um deles – tentei criar as sequências perfeitas de figuras e fazer anotações sobre elas, como notas musicais. Preencheria esse esqueleto perfeito com algum material quando a hora chegasse.  

Estes experimentos não duram muito tempo, é claro. A maldita besta, o material, se mantém ficando maior e mais desagradável. Finalmente, você percebe que tem uma escolha. Se esconda, deseje ou lute com isso. Duvido que haja um escritor com mais de quarenta anos que não perceba em seu coração que o gênio literário, em prosa, consiste em proporções mais da ordem de 65% do material e 35% do talento no cantinho sagrado. 

Nem por um momento duvidei que, para escrever uma longa ficção sobre a cidade de Nova Iorque, teria que fazer o mesmo tipo de pesquisa que tinha feito para The right stuff ou Radical chic e Mau-Mauing the flak catchers, mesmo que agora estivesse morando em Nova Iorque por vinte anos. Em 1981, quando comecei a trabalhar sério, pude ver que a Vanity fair, de Thackeray, não seria um modelo adequado. Vanity fair lida, principalmente, com os princípios da sociedade britânica. Um livro sobre Nova Iorque em 1980 teria que lidar com a alta e a baixa Nova Iorque. Então escolhi Wall Street como o ponto alto da escala, e South Bronx como o baixo. Conhecia um pouco mais de pessoas na Wall Street do que no South Bronx, mas ambos eram terras incógnitas, no que diz respeito à minha própria experiência. Mergulhei de cabeça e não sabia exatamente aonde.  Qualquer grande livro sobre Nova Iorque, imaginei, deveria ter pelo menos uma cena do metrô. Eu comecei a andar no metrô no Bronx. Certa noite, olhei para o outro lado do vagão e vi alguém que conhecia sentado em uma estranha plataforma. Ele era um corretor de Wall Street que não via há nove ou dez anos. Ele estava vestindo um terno executivo, mas as pernas da calça estavam enroladas três ou quatro voltas, revelando um par de meias verde oliva do exército, duas canelinhas finas e uns tênis ortopédicos listrados em decomposição. No chão, entre seus pés, havia uma sacola de compras, da A&P, feita de polietileno branco. Ele usava uma capa de chuva suja e um chapéu sebento, e seus olhos corriam de um lado ao outro do vagão. Fui lá, disse um ‘oi’ e fique sabendo do seguinte. Ele e sua família viviam no longínquo North Bronx, onde até hoje há alguns encantadores e arborizados bairros ao estilo Westchester, e ele trabalhava em Wall Street. Os metrôs ofereciam um ótimo serviço, exceto que ultimamente havia um problema. Bandos de jovens durões haviam passado a vagar pelos vagões. Eles escolhiam uma provável presa, se aproximavam do assento dela, a cercavam, e pediam o dinheiro. Eles mantinham as mãos nos bolsos, e nunca empunhavam armas, mas, seus olhares maliciosos e ameaçadores geralmente eram o suficiente. Quando aconteceu com este camarada ele se rendeu, deu a eles tudo que tinha – e desde então o metrô era um teste dos nervos. Ele tinha que fazer a viagem de e para Wall Street nesse disfarce patético para evitar parecer valer a pena ser roubado. Na sacola de compras, da A&P, ele carregava seus sapatos e meias de Wall Street.

Decidi que usaria esta situação no meu livro. Foi aqui que comecei a ir não na direção do lamento de Roth, mas à lei de Muggeridge. Enquanto Malcolm Muggeridge era editor da Punch, foi anunciado que Khrushchev e Bulganin estavam vindo para a Inglaterra. Muggeridge teve a idéia de um itinerário falso, uma lista dos lugares mais ridículos que os dois pequenos líderes soviéticos, barrigudos em forma de pêra, poderiam desfilar durante a solene visita de negócios de Estado. Pouco antes do tempo da imprensa, metade do percurso teve que ser descartado. Coincidia exatamente com o itinerário oficial, recém-lançado, o que levou Muggeridge a observar: vivemos em uma época em que não é mais possível ser engraçado. Não há nada que você possa imaginar, por mais absurdo que seja, que não seja prontamente executado diante dos seus olhos, provavelmente por alguém bem conhecido.

Este, imediatamente, se tornou meu problema. Primeiro escrevi A fogueira das vaidades em uma série para a Rolling Stone, produzindo um capítulo a cada duas semanas com uma arma em minha têmpora. No terceiro capítulo, introduzi um dos personagens principais, um promotor público do Bronx, de 32 anos, chamado Larry Kramer, sentado no vagão do metrô vestido como meu amigo estava vestido, seus olhos estavam correndo por todos os lados da mesma maneira. Isso deveria criar um suspense insuportável nos leitores. O que na Terra reduziu este jovem saudável à um estado tão patético? Este capítulo foi publicado em julho de 1984. Em uma parte programada para abril de 1985, os leitores ficariam sabendo de sua humilhação por uma gangue, que havia tomado todo seu dinheiro e distintivo de promotor do pequeno distrito. Mas aconteceu que em dezembro de 1984 um jovem rapaz, chamado Bernhard Goetz, se encontrou em uma situação idêntica no metrô de Nova Iorque, cercado por quatro jovens, que eram, na verdade, de South Bronx. Longe de se esconder, ele tirou um revólver calibre .38 e atirou em todos os quatro, se tornando uma das figuras mais notórias dos Estados Unidos. Agora, como eu poderia, quatro meses depois, em abril de 1985, prosseguir com meu plano? As pessoas diriam: Pobre coitado do Wolfe, ele não tem imaginação. Ele lê os jornais, pega essas ideias óbvias, e nos entrega esse banana do Kramer, que se esconde. Então, abandonei o plano, deixei tudo de lado. A sede dos leitores da Rolling Stones, se alguma, de saber o que aconteceu ao Assistente do D.A., de trajes lamentáveis e alarmantes tiques, Kramer, nunca foram satisfeitas. 

Em uma área, entretanto, eu estava bem à frente das notícias, e isso emprestou ao livro um curioso tipo de vida alternativa. O enredo se transforma com uma séria lesão de um jovem negro em um incidente envolvendo um casal branco em um automóvel. Enquanto o jovem repousa em coma, várias forças cobrem o caso – a imprensa, políticos, promotores, corretores imobiliários, ativistas negros – cada qual ansiosa, por motivos particulares, em transformar o assunto num Armagedom racial. Supremo, entre eles, está o reverendo Bacon, um ministro do Harlem, um gênio em lidar com a imprensa, que logo tem a cidade inteira pulsando para o chocante destino do jovem. No livro, o incidente projeta sua sombra nas próximas eleições, e ameaça custar a prefeitura aos brancos da cidade.

A fogueira das vaidades chegou às livrarias em outubro de 1987, uma semana antes da quebra de Wall Street. Desde o início, na imprensa, havia uma certa quantidade de resmungões, alguns não muito bons, sobre a minha descrição do Reverendo Bacon. Ele era uma caricatura grotesca de um ativista negro, grotesco ou pior. Então, apenas três meses depois, o caso Tawana Brawley estourou. Na linha de frente do caso Brawley apareceu um ministro ativista negro, o Reverendo Al Sharpton, que era, de fato, um gênio para lidar com a imprensa, até mesmo quando estava encurralado. A certa altura, o New Iorque Post recebeu uma informação de que Sharpton estava tendo seu longo cabelo Byroniano alisado em um salão de beleza no Brooklyn. Um repórter e um fotógrafo esperaram até ele ser enfiado debaixo do secador, então uma brecha. Longe de levantar a mão e gritar, reclamando da invasão de privacidade, Sharpton indiferente acenou para seus perseguidores. “Venham, garotos, e tragam suas câmeras. Quero que vocês vejam como….um homem de verdade…faz seu cabelo”. Exatamente assim! – outro triunfo de Sharpton na mídia, sob o título de “Masculinidade para vagabundo”. Na verdade, Sharpton era tão exuberante, que os resmungos sobre o Reverendo Bacon deram um giro de 180°. Agora, ouvia as pessoas reclamarem: este pobre coitado do Wolfe, ele não tem imaginação. Aqui, na primeira página de todos os jornais, estão os bem reais – e ele deu para nós aquele pequeno estudante de divindades, o Reverendo Bacon.

Mas, também comecei a ouvir e ler, com crescente frequência, que A fogueira das vaidades era “profético”. O caso Brawley se tornou apenas um de uma série de incidentes raciais, no qual jovens negros eram, ou pareciam ser como, as vítimas da brutalidade branca. E esses incidentes, de fato, lançaram uma sombra para a corrida de prefeito em Nova Iorque. Como no prólogo do livro, o prefeito, na vida real, foi hostilizado, assediado e ouviu gritos de manifestantes no Harlem, embora não tenha sido forçado a fugir do pódio. E, talvez, esses incidentes, estivesse junto a fatores que custaram a prefeitura ao prefeito branco. Mas, em nenhum momento, pensei em A fogueira das vaidades como profético. O livro apenas mostrou o que era óbvio para qualquer um que tivesse feito o que fiz, desde o começo dos anos de 1980, quando comecei; qualquer que tivesse saído e olhado francamente para a nova face da cidade, e prestado atenção não somente ao que as vozes diziam, mas, também, aos sussurros. 

Isso me leva à um último ponto. Não é, simplesmente, que a reportagem é útil para coletar os petits faits vrais, que criam a verosimilhança e fazem o romance emocionante e absorvente, embora valha prestar atenção à este lado do empreendimento. Minha opinião é que, especialmente em uma era como essa, ele são essenciais para os maiores efeitos que a literatura pode alcançar. Em 1884, Zola desceu pelas minas de Anzin para documentar o que se tornaria o romance Germinal. Posando como secretário de um membro da Câmara dos Deputados francesa, ele desceu para as escavações usando roupas da cidade, seu sobre-tudo, colarinho duro e chapéu alto rígido (isso me atrai por razões pelas quais não vou atrasar vocês), e carregando um caderno de anotações e uma caneta. Um dia, Zola e os mineiros que estavam servindo como seus guias, estavam a 150 pés abaixo do chão quando Zola percebeu uma enorme cavalo de batalha, um Percheron, puxando uma trenó com carvão através de um túnel. Zola perguntou: “Como vocês trazem e tiram o animal da mina todos os dias?” No começo os mineiros pensaram que ele estava brincando. Então eles perceberam que era sério, e um deles disse: “Sr. Zola, não entende? Aquele cavalo chegou aqui quando era um filhote, pouco mais que um potro, e ainda é capaz de entrar nos baldes que nos trazem aqui. Aquele cavalo cresceu aqui. Ele vai ficar cego depois de um ou dois anos, pela falta de luz. Ele transporta carvão para lá e para cá até não poder mais, então ele morre aqui, e seus ossos são enterrados aqui em baixo.” Quando Zola transfere esta revelação das páginas de seu caderno de anotações para as páginas de Germinal, isso faz com que os pelos dos braços se arrepiem. Você percebe, sem a necessidade de intensificação, que os cavalos são os próprios mineiros, que descem abaixo da Terra como crianças e cavam carvão nos buracos até não conseguirem mais, então são enterrados, muitas vezes, literalmente, lá em baixo.

O momento O Cavalo, em Germinal, é um dos momentos mais supremos da literatura francesa – e teria sido impossível sem este peculiar, e penoso, trabalho que Zola chama de documentação. Neste momento fraco, pálido e tabuado da literatura estadunidense, nós precisamos de um batalhão, uma brigada, de Zolas para nos dirigirmos a este nosso barroco mesquinho estampado país selvagem, bizarro e imprevisível, e reivindicá-lo como propriedade literária. Philip Roth estava absolutamente certo. A imaginação do romancista é impotente diante do que ele sabe que vai ler nos jornais amanhã de manhã. Mas, uma geração de escritores estadunidenses extraiu, precisamente, a conclusão errada daquela observação perfeitamente válida. A resposta não é deixar a violenta fera, também conhecida como a vida ao nosso redor, para os jornalistas, mas fazer o que os jornalistas fazem, ou supunha-se que façam, que é combater a fera e influenciar um acordo.

De uma coisa tenho certeza. Se os escritores de ficção não começarem a encarar o óbvio, a história literária da segunda metade do século XX vai recordar que os jornalistas não só assumiram as riquezas da vida estadunidense como seu domínio, mas também apreenderam o terreno da própria literatura. Qualquer personalidade literária disposta a olhar para o terreno literário estadunidense nos últimos 25 anos – olhar para trás com franqueza, na solidão do estudo – admitirá que, nos últimos quatro anos, cinco dos melhores livros de não-ficção foram melhor literatura que o mais altamente premiado livro de ficção. Qualquer candidato à observador verdadeiramente sincero irá mais longe. Por muitos anos, os mais altamente premiados livros de ficção tem sido ofuscados, em termos literários, por escritores qual os literatos costumeiramente repudiam como “escritores de ficção popular” (uma curiosa descrição), ou romancistas de gênero. Estou falando de romancistas como John le Carré e Joseph Wambaugh. Deixando a questão do talento de lado, le Carré e Wambaugh tem uma enorme vantagem sobre seus confrades literários. Eles não estão apenas dispostos a lutar contra a besta; eles realmente amam a batalha. 

Em 1973, em The new journalism, escrevi que a não-ficção tinha substituído o romance  como “evento principal” da literatura estadunidense. Isso não era exatamente a mesma coisa que dizer que a não-ficção destronou o romance, mas estava perto o bastante. Na época foi uma afirmação precipitada, mas, como Fidel lo ha dijo, a história me absolverá. A menos que algum movimento aconteça na ficção estadunidense nos próximos dez anos, que seja mais notável que qualquer um detectável no momento, o pioneirismo na não-ficção será registrado como o mais importante experimento da literatura estadunidense na segunda metade do século XX. 

Falo como um jornalista, com algum entusiasmo, como você pode ver, um jornalista que tentou capturar a besta em longas narrativas de ambas, ficção e não-ficção. Comecei a escrever A fogueira das vaidades com a suprema confiança disponível apenas à escritores que não sabem onde estão se metendo. Logo mergulhei no desespero. Uma coisa muito óbvia que eu não contava: em não-ficção você é, convenientemente, provido de cenários, personagens e o enredo. Agora você tem a tarefa – e ela é monstruosa – de trazer tudo isso para vida de forma tão convincente quanto a melhor ficção realista. Mas você não precisa inventar a história. Na verdade, você não pode. Encontrei a repentina liberdade da intimidante ficção. Isso foi, pelo menos, um ano antes de eu me sentir confortável o suficiente para usar as vantagens da liberdade, que são formidáveis. As últimas três décadas foram décadas de mudanças sociais tremendas, e às vezes convulsiva, especialmente nas grandes cidades, e a maré da quarta grande onda de imigração fez com que o cenário parecesse ainda mais caótico, randômico e descontinuado, para usar os clichés literários de um passado recente. A economia com a qual a ficção realista pode unir as muitas correntes de uma cidade em uma única história bastante simples foi algo que acabei achando hilariante. É uma facilidade que não está disponível ao jornalista, e vai parecendo mais útil a cada mês que passa. Apesar de toda a conversa atual de “seguir juntos”, vejo as facções se multiplicando rapidamente nas cidades modernas, tentando se isolar mais diligentemente do que nunca. Por mais brilhante e ambicioso que fosse, um romance de não-ficção sobre, digamos, o caso Tawana Brawley, não poderia apreender toda a Nova Iorque de 1989 entre capa e contra-capa. Poderia iluminar muitas coisas, mais especialmente a imprensa e o funcionamento do sistema de justiça, mas não alcançaria Wall Street ou a Park Avenue, recintos que até o engenhoso Al Sharpton não frequenta. Em 1970, os Panteras Negras apareceram na sala de Leonard Bernstein. Hoje, não é chic, radical ou qualquer outra coisa, misturar as cores nos grandes salões.  

Então as portas se fecham e as paredes sobem! É apenas outro convite aberto à literatura, especialmente na forma do romance. E como pode qualquer escritor, de ficção ou não-ficção, resistir em ir para aposta, à descoberta! No fim de Dead souls, Gogol pergunta: “Para onde você está crescendo, então, Rússia? Dê-me uma resposta!” A Rússia não dá nada, mas apenas segue mais rápido, e “o ar, despedaçado, troveja e se transforma em vento”, e Gogol continua firme, ofegante, com os olhos cheios de admiração. Os Estados Unidos de hoje, em uma corrida precipitada, pode ou não precisar de uma literatura digna de sua vastidão. Mas, os romancistas estadunidenses, sem dúvida nenhuma, realmente precisam, nessa hora neurastênica, do espírito de seguir em frente rumo àquele percurso selvagem. 

Texto original | https://harpers.org/archive/1989/11/stalking-the-billion-footed-beast/

Mais sobre Tom Wolfe | https://pt.wikipedia.org/wiki/Tom_Wolfe