O mundo de Carlos Brito [conto]
Acordei hoje determinado a mudar de vida. Definitivamente, ser Carlos Brito não da mais. Então decidi que o melhor seria ser o Iggy Pop. Bastante dinheiro, poucas preocupações e realizações já concretas para evolução da humanidade foram os critérios que pesaram. Vivendo sob o domínio de uma democracia liberal republicana livre e ocidental, tenho plenos direitos constitucionais (e divinos, pela ordem dos muitos milhões de deuses espalhados por aí), de ser quem eu bem entender por qualquer razão que me convenha. Hoje vou usufruir desse ilimitado direito, herdado da gloriosa luta e morte de guerreiros e guerreiras em nome da paz, e ser o Iggy Pop.
Se eu fosse o Carlos Brito, em uma manhã de domingo, estaria definhando em culpa e angústia por toda uma vida à la Madame Bovary (que, de facto, Carlos Brito nunca leu, mas sabia da história e crítica porque assistiu, por engano, a uma maravilhosa aula sobre na Universidade dos Monges sem Capas). Mas sendo o verdadeiro Iggy Pop, não. Os fracassos, decepções, falhas, não importam. Sou quase Ismael (que Carlos Brito teria escolhido se não tivesse escolhido o Iggy Pop, porque, de facto, leu este livro). Tudo já passou, sobrevivi magro e pálido e ainda me restou fama, fortuna e muita história para contar. Estou na boa, diriam numa praia qualquer.
Acordei sozinho, depois de uma noite de perversões solitárias de sábado, o que não desperta nenhum tipo de repulsa de mim mesmo. Já choquei a sociedade de todas as formas possíveis, voluntária e involuntariamente (que é quando você fica sabendo o que fez pelas notícias dos jornais). Está tudo normal (dizem os jornais). Com companhia, nas décadas de 1970, 1980 e 1990, houveram sábados à noite muito mais devassos. Pensando bem, não ter ninguém aqui é a melhor coisa que poderia acontecer a esta altura. Só quem teve que aguentar as ressacas da Annie Leibovitz, ou as loucuras do David Bowie, sabe o quanto é mais leve viver sem isso.
Agora, é até estranho ter acordado tão cedo, às 8h. Parece que não tem nada para fazer. Não estou acostumado a levantar esta hora. Será que se sair para ir na padaria uma multidão vai me cercar atrás de fotos e autógrafos? Melhor não arriscar. Sou meio excêntrico, não gosto mais dessa bajulação. Sei lá, colocar um show histórico na televisão? O Queen tocando no Live Aid em 1985? Ou o Rock’n Roll Circus? Faz tempo que não vejo este. A versão de Song for Jeffrey, do Jethro Tull, ficou abissal. Me jogar no sofá da sala, fumando um baseado, no domingo de manhã, tomando uma cerveja. Isso sim é viver the american dream.
Posso escrever uma música. É. Visto que vivo de me esgoelar num palco há cinquenta anos, escrevo canções com a mesma facilidade que um encanador troca o sifão da pia (sempre que uma pia é aparelhada com um sifão). Um bloco de folhas já escritas, uma caneta sem tinta na mão, e a letra simplesmente sai, já no ritmo. “Amanhã será um lindo dia,\ da mais louca alegria,\ que se possa imaginar….”. Acho que essa música já existe. Não importa. Faço uma versão diferente. Coloco uma guitarra estridente ou faço uma parceria com algum DJ, tanto faz. Tem um monte de gente fazendo isso com as minhas músicas e vivendo disso. Além do que, qualquer coisa que eu faça vai ser um sucesso mesmo.
Sou um cara cult. Depois do almoço vou ler um livro. Talvez Kerouac. Ou uns poemas do Ginsberg. “America I’ve given you all and now I’m nothing.\ America two dollars and twentyseven cents January\ 17, 1956.\ I can’t stand my own mind.\ America when will we end the human war?\ Go fuck yourself with your atom bomb.” Oh, good times. Quando a gente assinava contratos milionários para publicar qualquer bobagem resmungando do mundo. Fazer a diferença só pelo fato de existir e tomar ayahuasca no deserto. Neste sentido Jim Morrison foi um gênio, em todos os outros era só um idiota (e o cosmos está cheio deles).
No resto da tarde posso chamar para vir aqui alguma amiga das épocas de gozolândia. A Kate Pierson ou a Chrissie Hynde. Beber alguma coisa leve, bourbon com coca ou martíni com azeitona, falar umas besteiras sobre as antigas, criticar as novas. Nada muito profundo ou que tenha necessariamente que fazer algum sentido. Só jogar conversa fora e sentir que não se está abandonado no mundo (isso significa dizer que tudo no planeta acontece por um simples determinismo destinal celestial, sentimento que aflora depois do consumo de bebidas alcoólicas). Uns beijos e algum carinho ao pôr do sol em nome das glória da juventude, e tchau.
Depois, tomar um chá assistindo um filme do Ennio Morricone: Era uma vez no oeste, ou Era uma vez na América? É indiferente. Nem vou estar prestando atenção. Vou estar sorrindo relaxado pensando em como tive uma vida próspera, longa e feliz. Je ne suis pas Madame Bovary. Passei pelas drogas. Não fui pego pela AIDS. Vou rir levemente lembrando das loucuras daqueles que não sobreviveram e ir dormir com a certeza de que tudo valeu a pena (isso aconteceria seja quem quer que tivesse escolhido quando acordei).
Vai ser bom ser Iggy Pop, hoje. Talvez amanhã eu seja a Janis Joplin (ou a Madre Teresa de Calcutá).
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