As aventuras de J. H. Barreiro tentando ser escritor [conto]

Acordei de novo. Dói tudo. Os malditos cupins estão comendo meu estômago enquanto leprechauns mineram minha cabeça. A julgar pelas marcas no corpo, devo ter sido surrado em algum momento da noite passada por uma gangue que descobriu meus planos para dominar o mundo. Não aguento mais isso. Deus, qual é o porquê de tanta agonia? Cadê? Onde está a mulher pela qual vou me apaixonar perdidamente, cometer loucuras, me ajustar na vida, para ser abandonado, e com o sentimento de rejeição e perda escrever a obra mais bela das artes literárias? Aquela que vai vender horrores, encantar os críticos, virar filme em Hollywood, série no Netflix, playlist no Spotify. Que vai me levar à ganhar prêmios, assinar contratos milionários, fama e tudo mais que vem no pacote. Ir no programa do Bial e falar descompromissadamente que a vida suplantou o realismo e a arte está à deriva. Mas a geladeira e a tela em branco são opressivas. Ambas revelam o fracasso de toda uma vida dedicada à sorte. Fiz um café ralo e acendi um cigarro. Precisava de mais. De uma loira de 1,80m e cabelos angelicais, filhos espertos e educados, sedan na garagem, sobrado em um condomínio fechado, cartão de crédito, um labrador, aspirador de pó, cinco tipos diferentes de panelas de arroz, todos os dentes na boca e brancos, desodorante spray, comida orgânica, café de cápsula, smartTV gigante no quarto e na sala, sofá de couro reclinável, geladeira que sai água gelada e gelo da porta. De muito mais. 

Tomei um banho para tentar parecer tudo aquilo que eu não era. Esperei um pouco na frente do computador fumando maconha e escutando rádio. Sem ideia, saí para procurar o que faz a vida valer a pena, e alguma esperança. Passei na frente de um bar. Os raios de sol do fim da tarde refletindo no vidro do fundo, e batendo nas mesas, fazia uma luz tão gloriosa que concluí que era um sinal dos céus indicando o caminho. Entrei e o cara atrás do balcão me olhou como se soubesse todos os meus pecados, e não os perdoasse. Sentei num banco, pedi uma cerveja e um conhaque, e fiquei observando aquele brilho alaranjado. Tinha uma espécie de força que pulsava e conduzia a consciência para um lugar que me fazia sentir melhor a cada gole. Estava quase chegando ao Nirvana quando o próprio Joe Cabot entrou no bar falando, com voz rouca, alto o suficiente para ser ouvido por todos os lados: “Tem algum homem querendo trabalhar aqui?” Duas mãos se ergueram. “Preciso de pelo menos mais um palerma, cambada de vagabundo!” Me senti tocado pelas suas palavras, lembrei da geladeira, e indiquei que estava à disposição. O chefe fez um sinal com a mão e todos se juntaram à sua volta. “É o seguinte. São cem paus para descarregar umas cargas.” Olhamos um para o outro, e depois para ele, que talvez estivesse esperando alguma barganha. Perdemos a primeira chance. “Estejam no beco da rua de baixo daqui quarenta minutos.”

Cabot se virou e saiu. O cara atrás do balcão ria ironicamente. Nos sentamos enfileirados. Nos olhamos por alguns instantes. Fomos vendo as garrafas de cada um chegarem até o fim. Talvez nenhum de nós estivesse pensando no tempo passando. Talvez nós três estivéssemos pensando que esta era a oportunidade derradeira de não descobrir o que um homem falido é capaz de fazer por algum dinheiro. Quando a última garrafa secou nos olhamos procurando algum apoio para desistir. Fui o primeiro a levantar do banco e seguir rumo ao desconhecido. Segunda chance descartada.

Não sei direito por quanto tempo ficamos sentados naquele beco esperando sermos presos ou o chefe chegar, mas aquilo era puro realismo francês. Nossas vestimentas velhas e rasgadas, os chapéus amassados, a cara detonada, o cheiro podre das lixeiras, a vida desgraçada de quem não tem nada à perder. A empatia era extraordinária, e o principal pilar era a regra três: não pergunte, não conte, não olhe. Os motivos para abandonar o barco se sucediam, mas talvez ainda estivéssemos negando que ele estava afundando. O ponto sem volta se concretizou quando Vincent Vega parou com uma Kombi na esquina e deu dois sinais de luz. Nos juntamos a mais quatro rejeitados. A regra três também valia ali. O Vincent dirigia como se quisesse matar todos nós, o que não parecia ser um problema para ninguém. Deus, estou chegando. Vamos acertar nossas contas.

Depois de sairmos do limite da cidade entramos num canavial e paramos num espaço aberto no meio do futuro do Brasil. Tinha uns dois tratores e mais umas duas Kombis iluminando uma grande vala. “Vocês aí, esperem o trabalho chegar com os outros.” Eram mais meia dúzia de sem rumo, isolados perto de um dos faróis, aplicando a terceira regra ao pé da letra. Junto com a chuva, dois caminhões apareceram para abrilhantar ainda mais aquele show. De um deles desceu o Sr. Cabot. “Vamos lá, todos aqui.” Quando as portas dos baús se abriram a emoção tomou de assalto a frieza dos esquecidos. Ninguém ali era Zola. Ninguém foi observar os infelizes trabalhando. Nossa nobreza estava em se tornar os infelizes. Só assim podemos falar com propriedade dos flagelos do trabalho dos fracassados. Da loucura que é ver um barril de óleo emanando uma luz verde limão e lembrar que você está ali para colocar as duas mãos nele, erguer acima da cabeça, e jogar num buraco. Antes de Gregor Samsa acordar metamorfoseado Kafka deve ter feito alguma coisa parecida com isso. “Quantas pilhas vão nesse treco?” Perguntou um dos condenados, mandando a terceira regra definitivamente para o espaço. O diretor de palco do experimento em andamento deu uns dois passos para trás. Os outros de nós se viraram para ele com cara de “o que está acontecendo aqui?” “Não querem receber?” Bradou o velho Cabot. “Sim, queremos!”, dissemos todos ao nos virar e começar a descarregar os latões na vala. 

Não estava pesado. Dava para levantar um sozinho sem muito esforço. Era como se eles tivessem carregados de romances escritos nos séculos XVIII e XIX. Estou tendo mais uma ideia para escrever um livro. Será sobre um contador, especialista em gerar origens para fundos oriundos bem do fundo mesmo. Mas ele queria se aposentar. Afinal, aos 75 anos já acumulará uma fortuna em porcentagens. Então um cliente, que tinha se tornado um grande amigo, revoltado com o fim do esquema, sequestra a filha e a neta do velho, e diz que elas só continuarão vivas enquanto ele estiver trabalhando. Todo dia 10 ele receberia sua porcentagem, e poderia almoçar com elas num porão, sabe-se lá aonde (ele estaria com os olhos vendados no caminho, inclusive no avião), todo segundo domingo do mês. Elas seriam muito bem tratadas durante o confinamento, em alguma ilha da América Central. Manuel, o contador, aceitaria a proposta pensando que poderia contornar a situação num futuro próximo. Mas o amigo começaria a cobrar 25% de taxa para sustentar a filha e a neta dele, e um tempo depois Manuel vai negociar trabalhar em troca de reunir sua família e viverem todos no cativeiro da América Central. O gancho para a sequência seria a revolta e tentativa de fuga da filha, que se tornará amante e se aliará ao…Meus pensamentos foram interrompidos por um contato repentino e inesperado do mundo exterior. “Você já trabalhou para estes caras antes?” A total desconsideração pelo princípio que regia nossa empatia me deu mais medo do que enterrar aquelas luzes. “Não.” “O que você acha que é isso?” Aquela conversa não era algo normal. No mundo ideal dos boçais alguém teria gritado, em tom ameaçador, “calem a boca e trabalhem, animais”. “Não sei.” 

Levantei a mão e pedi para o comandante daquela zona toda para ir dar uma mijada. Precisava sair de perto das perguntas e voltar para o cativeiro da América Central. Adentrei uns metros para a privacidade do canavial buscando a concentração necessária para esquecer tudo que estava acontecendo ali. Minha meditação transcendental no espaço inviolável do raio de uma mijada foi interrompida pelo barulho de carros chegando, freadas bruscas, gritos e tiros. Me joguei na lama fétida que tinha feito na minha frente e coloquei as mãos na cabeça. Fechei os olhos e imaginei que estava num quarto azul aveludado, no qual não havia nada além de paz e o canto dos passarinhos. A agitação insistia em me puxar para fora do meu paraíso particular. Levantei e comecei a correr na direção oposta ao caos. Cheguei até a rodovia e percebi que estava tremendo e, pelo peso nas calças, talvez estivesse cagado. Sentei e acendi um cigarro vendo os carros passando, e me perguntando porque Deus não me escolheu para estar dentro de um deles. Escutando uma valsa de Strauss a caminho da felicidade. Que poderia ser qualquer lugar meio limpo que servisse dose em copos de doses. Na falta de uma resposta voltei a caminhar no sentido das luzes da cidade. Preciso chegar em casa antes que alguém note minha existência.

* Publicado originalmente na revista Os Fazedores de Letras (Portugal)

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