A partida da vida [crônica]
Muriel corre, dando tudo de si para alcançar a linha de chegada. Casa na praia, carro novo e televisão de 59’’. Passa por um, por outro, desvia de obstáculos, pula atalhos. Tem a ternura do sangue nos olhos, a doçura da faca nos dentes. É como um cavalo liderando o páreo. Foco pregado no objetivo, visão periférica como pinceladas de Monet, o som do mundo esmaecendo. Galopando para a glória. Vamos Muriel, vamos. As chicotadas são carinhos de incentivo. Não pare agora. Com vontade, garra, força, Muriel não para. Sofre sem mover os lábios. Fura as fronteiras com atitude firme. Em frente, com a cara esbugalhada, bufando. Enfrenta os desafios sem se lamentar. Passa por cima de tudo igual um trator nivelador de asfalto. Um rolo compressor esmagando qualquer coisa que possa diminuir sua velocidade ultra sônica à glória. Sentando o pé. Muriel não descansa. Muriel não se distrai. Muriel vai reto, direto, seco. No ritmo industrial. Bate, estaca, bate, estaca, bate, estaca. Acelerando à vitória. Hoje sim, hoje sim, hoje sim. Casa na praia, carro novo e televisão de 59’’. Por Deus, Jesus Cristo, Maomé e Alá, saim da frente. Lá vai Muriel. Dribla as adversidades como o Maradona contra a Inglaterra na Copa do Mundo de 1986. Na raça. É o inevitável, é a recompensa. Sem perguntas, sem respostas. Sem mistério para ser revelado. Puro sangue, suor e lágrimas. Nenhum sacrifício será poupado. Por Ismael, Baleia e Sinhá Vitória. Cortar na carne com a mesma frieza de Margaret Thatcher. Futuro, futuro, futuro. Horizonte, horizonte, horizonte. Azul, vermelho, luzes a brilhar. A redenção no instinto felino da existência na pujança. Atacando o tempo com a voracidade da verdade. Logo depois da curva em grampo. Da outra, da outra. Mais uma. Desfilando sucesso. Sentindo o vento na cara. É Muriel. Rumo a bandeira quadriculada. Casa na praia, carro novo e televisão de 59’’.
Oh, não. Muriel encontra violentamente o muro. Mas explode em euforia. Se levanta, sacode o rabo e sai em perseguição ao inevitável destino. Casa na praia, carro novo e televisão de 59’’.
* Crônica publicada na coletânea do prêmio OffFlip 2021 – sob o título de Rotina 7×7.