Substitutos modernos para religião – Por Aldous Huxley (1927) [tradução livre]

Imagem | Domínio Público via Wikipédia

Tradução livre | Eder Capobianco

Publicado originalmente na edição de novembro de 1927 da revista Vanity Fair.

Alguns dispositivos humanos que substituíram a velha fé na presente era irreligiosa.

I – O declínio da religião

Durante os últimos duzentos ou trezentos anos as religiões do Ocidente decaíram manifestamente. Tem havido altos, é verdade, assim como baixos; mas o movimento descendente predominou, e como resultado estamos vivendo hoje no que é provavelmente a época mais irreligiosa de toda a história. Mas, o fato de as religiões terem se degradado durante as últimas gerações não significa que estejam definitivamente mortas. E o fato de que muitas pessoas estão agora sem religião não significa que não tenham algum substituto para religião; seus sentimentos e intuições religiosas podem encontrar vazão em formas que não são imediatamente reconhecíveis como religiosas. 

Novamente, não há razões para acreditar que a condição presente de irreligião seja permanente. As massas parcialmente educadas, é verdade, acabam de descobrir, há cerca de quarenta anos atrás, o materialismo da ciência do século XIX. Mas os cientistas, é significativo notar, estão abandonando rapidamente sua posição materialista. O que eles pensam agora, as massas sem dúvida estarão pensando daqui a uma geração.

Os instintos religiosos daqueles que não têm uma religião reconhecida (não levo em consideração o número ainda considerável e crescente daqueles que a têm) encontram expressão em uma variedade surpreendente de maneiras não religiosas. Na falta de religião, eles se proporcionaram substitutos para ela. É sobre esses substitutos, ou suplentes, que agora proponho escrever.

II – Natureza da religião genuína

Os substitutos de uma coisa não podem ser discutidos, de forma inteligente, a menos que algo seja conhecido sobre a natureza do artigo genuíno. Só quem provou manteiga pode criticar as diferentes marcas de margarina. É o mesmo com os substitutos da religião. A menos que comecemos com alguma ideia preliminar da natureza da religião, seremos incapazes de reconhecer, muito menos avaliar, os substitutos da religião.

Não tentarei dar uma definição formal de religião. Essas definições são, em sua maioria, tão vagas e abstratas que quase não têm sentido. O que é necessário para nossos propósitos não é uma definição de religião, mas catalogar os principais estados mentais e ações que podem ser reconhecidas como religiosas. Esse catálogo pode compreender:

1 – Um sentimento de temor frente aos mistérios e imensidão do mundo. Esse, suponho, seja o estado de espírito religioso mais fundamental. Esse sentimento é racionalizado na forma de crença em seres sobrenaturais, tanto bondosos quanto malévolos, como é o mundo em que os homens vivem. Tudo isso leva, muito naturalmente, a ritos e cerimônias. O sentimento religioso encontra sua expressão ativa, em oposição à intelectual, na forma de um ritual propiciatório. O ritual, assim que é inventado, ocupa um lugar de importância primordial em todas as religiões. Pois o rito evoca, por associação, aquelas emoções de admiração que são, para o indivíduo que as sente, o próprio deus. E essas emoções são acompanhadas por outras não menos estimulantes e, portanto, não menos divinas. A principal delas é o que pode ser chamado de emoção social, o sentimento de excitação causado por estar no meio de uma multidão.

2 – Ascetismo é comum a todas as religiões. É desnecessário tentar explicar por que os homens deveriam acreditar que podem ganhar os favores dos deuses abstendo-se de prazer e conforto. O fato de terem feito isso é suficiente para nós.

3 – A miséria humana é tão grande e difundida que uma das funções principais da religião tem sido a de consolo, e uma das doutrinas religiosas mais típicas é a dos futuros estados compensatórios.

4 – Poder absoluto é uma característica típica das crenças religiosas. As doutrinas religiosas são defendidas com tenacidade apaixonada. Se o que se acredita é absolutamente verdadeiro, então é de vital importância que o crente se apegue à sua crença e se recuse a admitir a validade das crenças contrárias dos outros.

5 – Todas as religiões têm padres, que cumprem uma dupla função. Eles são, em primeiro lugar, como indicou M. Paul Valéry, mediadores entre o homem e os mistérios que os cerca, que eles entendem e podem aplacar com mais eficácia do que as pessoas comuns. Sua segunda função é terrena; são confessores, conselheiros, casuístas, médicos espirituais; em certos períodos, eles também foram governantes.

Esses são alguns dos fatos obviamente mais significativos sobre religião. Com isso em mente, podemos prosseguir para considerar seus substitutos. A primeira coisa que nos impressiona é que nenhum dos substitutos é mais do que parcialmente adequado. Uma religião cobre todo o terreno intelectual e emocional. Oferece uma explicação do universo; consola, fornece a seus devotos um sistema edificante e um luminoso deus criador. Nenhum substituto pode fazer tanto. Nenhum substituto religioso pode satisfazer completamente todas as necessidades religiosas dos homens. Muito da inquietação e incertezas, tão características de nosso tempo, provavelmente se devem ao senso crônico de desejos não satisfeitos de que os homens, naturalmente religiosos, mas condenados pelas circunstâncias a não ter religião, estão inevitavelmente fadados a sofrer.

III – O substituto político

Talvez o mais importante substituto para a religião seja a política. O nacionalismo extremo presenteia seus devotos com um deus a ser venerado – o País – junto com muitos rituais inspiradores, principalmente do tipo militar. Na maioria dos países e para a maioria de seus habitantes, o nacionalismo é uma fé espasmódica, da qual os crentes só ocasionalmente têm consciência. Mas onde o Estado é fraco e  está em perigo, onde os homens são oprimidos por um governante estrangeiro, torna-se um entusiasmo constante. Mesmo em países onde não há sentimento de inferioridade a ser compensado; onde não há perigos imediatos nem opressores, o substituição nacionalista da religião é freqüentemente inspiradora.

A democracia extrema tem tantos devotos quanto o nacionalismo extremo; e entre esses devotos há provavelmente mais entusiastas crônicos do que os encontrados entre os patriotas. Como substituta da religião, a democracia extrema é mais adequada do que o nacionalismo; pois cobre mais terreno, pelo menos como uma doutrina. Pois a democracia revolucionária é uma fé voltada para o futuro. Prega um estado futuro – neste mundo, não em outro – quando todas as injustiças do presente serão remediadas, toda a infelicidade compensada, quando o primeiro será o último e o último primeiro, e haverá coroas para todos e não mais choramingos e praticamente não mais trabalho. Além disso, é suscetível a um tratamento filosófico muito mais profundo do que o nacionalismo. “Meu país, certo ou errado”, é um sentimento que não pode ser totalmente racionalizado. A única razão que qualquer homem tem para amar e servir seu país é o mero acidente de que este seja seu. Ele sabe que, se tivesse nascido em outro lugar, o objeto de sua veneração teria sido diferente. Não o buldogue, mas o galo ou a águia teriam sido seu totem. Não o Dr. Arne, mas Haydn ou Rouget de Lisle o teriam entusiasmado. Não pode haver metafísica do patriotismo; é apenas um fato bruto e inalterável, que deve ser aceito como é. Democracia, por outro lado, não varia de país para país; é uma doutrina universal e imperecível – pois os pobres estão em todos os lugares e em todos os momentos conosco.

Doutrinariamente, a democracia revolucionária é um excelente substituto para a religião. Quando se trata de prática, entretanto, é menos satisfatória do que o nacionalismo. Pois o nacionalismo tem um tradicional ritual próprio, altamente elaborado. A democracia revolucionária não pode oferecer nada que se compare com as procissões majestosas, os desfiles militares, a música repleta de associações, as bandeiras, os inúmeros emblemas por meio dos quais o sentimento patriótico pode ser trabalhado e a presença real da pátria manifestada a todos os espectadores.

IV – Ritual

O anseio por rituais e cerimônias é forte e generalizado. Quão forte e amplamente difundido é demonstrado pela avidez com que homens e mulheres que não têm religião, ou uma religião puritana sem ritual, aproveitam qualquer oportunidade de participar de cerimônias de qualquer tipo. A Ku Klux Klan nunca teria alcançado seu sucesso no pós-guerra se tivesse se mantido à paisana e em reuniões de comitês. Os Srs. Simmons e Clark, os ressuscitadores daquele corpo notável, entenderam seu público. Eles insistiam em estranhas cerimônias noturnas nas quais as fantasias não deveriam ser opcionais, mas obrigatórias. O número de membros aumentou muito. O Klan tinha um objetivo; seu ritual simbolizava algo. Mas para uma multidão faminta de rituais, o significado é aparentemente supérfluo. A popularidade do canto comunitário mostrou que o rito como tal é o que o público deseja. Desde que seja impressionante e suscite emoção, o rito é bom em si mesmo. Não importa muito o que isso significa. Sempre que as pessoas têm uma chance, elas tentam satisfazer sua fome de cerimonial, embora o rito com o qual aplacam seja totalmente sem sentido.

V – Os substitutos da arte

A arte ocupa uma posição de grande importância no mundo moderno. Não quero dizer com isso que a arte moderna seja melhor do que a arte de outras gerações. Obviamente, não. A quantidade, não a qualidade da arte moderna, é importante. Mais pessoas se interessam conscientemente pela arte como arte. E mais se dedicam à sua prática do que em qualquer outro período. Nossa era, embora tenha produzido poucas obras-primas, é uma era inteiramente estética. Esse aumento no número de praticantes e diletantes em todas as artes não está desconectado com a diminuição no número de crentes religiosos. Para mentes cujas necessidades religiosas foram negadas sua satisfação normal, a arte traz uma certa satisfação espiritual.

As artes, incluindo a música e certos tipos importantes de literatura, foram na maioria dos períodos as servas da religião. Sua principal função era fornecer à religião os símbolos visíveis ou audíveis que criam na mente do observador aqueles sentimentos que para ele pessoalmente são o deus. Divorciadas da religião, as artes agora são cultivadas independentemente para seu próprio bem. Aquela beleza estética que antes era devotada ao serviço de Deus agora se estabeleceu como um deus por conta própria. O cultivo da arte pela arte tornou-se um substituto da religião.

VI – A religião do sexo

Outros exemplos podem ser dados de atividades que antes eram parte da religião, sendo isoladas e dotadas do significado pertencente corretamente ao todo. Os substitutos da religião, que originalmente não eram mais do que uma parte do artigo genuíno, são peculiarmente insatisfatórios e levam seus devotos a situações impossíveis. Um bom exemplo desse substituto parcial é a religião puritana dos tabus sexuais. O ascetismo, como vimos, é uma característica comum à maioria das religiões e que, no cristianismo, tem sido particularmente marcada. Mas nunca foi a totalidade de nenhuma religião. Entre os “cães de caça da obscenidade” contemporâneos (para usar uma das expressões cunhadas pelo Sr. Mencken), encontramos pessoas para as quais o culto da pureza sexual é em si um substituto completo da religião. O asceta cristão reprimiu todos os seus apetites – ganância e cobiça, bem como lascívia – e os reprimiu porque acreditava que, ao fazer isso, estava agradando a Deus. Os membros da liga da virgindade moderno não tem escrúpulos em arrancar dinheiro e se empanturrar; sua única preocupação é a autorização sexual, especialmente em outras pessoas. Muitas vezes é um pensador livre, de modo que suas campanhas contra a indecência não propiciam a Deus, mas são conduzidas porque são boas em si mesmas.

É um fato notável que, embora se possa dizer para todos os intentos e propósitos, o que se quiser sobre religião e política, enquanto se pode pregar publicamente o ateísmo e o comunismo, não se pode fazer menção pública, exceto em um trabalho científico, do fatos fisiológicos mais rudimentares. Na maioria dos países modernos, a única ortodoxia apoiada pelo Estado é a pureza sexual. Não pode, é verdade, orgulhar-se de muitos devotos sinceramente fervorosos. Mas a maioria dos poucos que genuinamente acreditam nisso são fanáticos. Definido em termos psicológicos, um fanático é um homem que supercompensa conscientemente uma dúvida secreta. Os fanáticos do puritanismo geralmente estão compensando uma lascívia secreta. Sua influência no mundo moderno é grande, desproporcionalmente ao seu número; pois poucos ousam, ao se opor a eles, correr o risco de serem chamados de imorais, corruptores da juventude, dissolventes da família e tudo o mais; (os verdadeiramente virtuosos têm um arsenal inesgotável de abusos em que se apoiar). Se os cães de caça tivessem uma religião genuína para satisfazê-los, provavelmente seriam menos incômodos do que são atualmente. Eras de fé, a julgar pela literatura medieval, não foram eras de puritanismo. 

VII – Negócios

Os apóstolos modernos do comércio estão tentando persuadir as pessoas a aceitar os negócios como substitutos da religião. Ganhar dinheiro, afirmam eles, é um ato espiritual; eficiência e honestidade legal são um serviço à humanidade; os negócios em geral são o Deus supremo. Corporações, sistemas financeiros, são as divindades subsidiárias às quais as devoções são pagas diretamente. Para os ambiciosos, os crescentemente prósperos e aqueles que estão muito envolvidos em uma vida árdua para serem capazes de ter qualquer pensamento árduo, a adoração dos negócios pode suprir a falta de uma religião genuína. Mas sua inadequação é profunda e radical. Não oferece uma explicação coerente de qualquer universo fora daquele cujo centro é a bolsa de valores. Em tempos de dificuldade, não pode consolar; não compensa nenhuma miséria. Seus ideais são realizáveis ​​muito rapidamente – eles abrem a porta para o cinismo e a indiferença. Suas virtudes são tão facilmente praticadas que, literalmente, qualquer ser humano que acredita na religião dos negócios pode se imaginar um homem verdadeiramente bom. Daí a terrível auto-satisfação e o farisaísmo consciente tão característicos dos devotos dos negócios. É uma religião justificativa para os ricos e aqueles que podem se tornar ricos. E mesmo com eles só funciona quando os tempos são bons e não há infelicidade pessoal. Ao primeiro sinal de uma tragédia ela perde toda a sua eficácia, a mais breve queda é suficiente para fazê-la evaporar. Os pregadores desse substituto comercial da religião são numerosos, barulhentos e pretensiosos. Mas nunca podem, pela natureza das coisas, ser mais do que momentâneo e superficialmente bem-sucedidos. Os homens precisam de um alimento espiritual mais substancial do que os negócios são capazes de fornecer.

VIII – Superstição

Se nossa hipótese original for verdadeira, e a natureza humana permaneceu de fato fundamentalmente imutável ao longo da história, então devemos esperar encontrar o mundo contemporâneo tão cheio de superstições quanto o mundo do passado. Pois crenças e práticas supersticiosas são expressões de certos estados mentais, e se os estados mentais persistem, o mesmo deve acontecer com as práticas e crenças. Nossa época tem o hábito de se autodenominar iluminada: por que é difícil entender, a menos que considere, como um progresso para a iluminação, o fato de que suas superstições fetichistas e mágicas não estão mais coordenadas com uma religião, mas, por assim dizer, se soltou e existe em um estado de independência.

A Igreja explorou esses hábitos de superstição e os fez servir aos seus próprios fins superiores. Reconhecendo o fato de que muitos homens e mulheres têm a tendência de atribuir vitalidade e poder a objetos inanimados, ela supriu suas necessidades, mas com objetos inanimados de um certo tipo – relíquias, imagens e coisas semelhantes que serviam para lembrar o venerador de fetiches de uma doutrina mais inteligente e abrangente do que ele próprio.

Os dias da superstição católica passaram e agora veneramos, sob o nome de mascotes, porcos da sorte, Billikens*, suásticas e semelhantes, todo um panteão de fetiches que não simbolizam nada além de si mesmos. É provável que ninguém esqueça o quão seriamente esses fetiches foram usados durante a guerra, quais poderes foram atribuídos a eles, que angústia e terror genuínos foram ocasionados por sua perda. Agora que o perigo passou, a adoração não é mais tão ardente. Mas, que isso ainda persiste, qualquer um pode descobrir se não tiver problemas em usar seus olhos e ouvidos. Do espiritualismo, da leitura da sorte e da prática da magia, nada direi. Sempre existiram e ainda existem, inalterados, exceto pelo fato de que não existe uma religião estabelecida em relação à qual essas práticas sejam boas ou más. A crença em espíritos malignos, embora ainda seja comum, é provavelmente menos difundida do que antes, mas a tendência humana de hipostasiar seu senso de valores ainda é tão forte como sempre. Os espíritos malignos estão fora de moda; devem, portanto, encontrar expressão em outras crenças. Com muitas pessoas, especialmente mulheres, os bacilos tomaram o lugar dos espíritos. Os micróbios, para elas, são a personificação do mal. Eles vivem com medo de germes e praticam elaborados ritos anti-sépticos para neutralizar sua influência. Há mães que acham necessário esterilizar os lenços que voltam da lavanderia; que, quando seus filhos raspam o dedo em um espinheiro, interrompem sua caminhada e correm para casa em busca de iodo, que fervem e destilam a virtude nativa em cada partícula de comida ou bebida.

* Boneca criada pela professora e ilustradora Florence Pretz, em 1908, que disse ter visto a figura em um sonho. Criou-se o mito de que a boneca trazia sorte, e milhares foram vendidas. [Wikipédia EN]

IX – Substitutos do padre

A dupla função do sacerdote, que é simultaneamente “supervisor das coisas vagas” e médico das almas, foram distribuídas no mundo sem sacerdócio moderno, e são exercidas não por uma classe de homens, mas por várias. Na sua qualidade de administrador dos sacramentos e intérprete do mistério que o cerca, o sacerdote é agora representado, de forma suficientemente inadequada, pelo artista. A importância extraordinária e bastante desproporcional atribuída pelo mundo contemporâneo aos artistas enquanto tais, independentemente do seu mérito, deve-se ao fato de o artista ser o evocador daqueles estados emocionais que servem a tantos de nós como um deus. É verdade que o deus que ele evoca costuma ser um deus da pior qualidade. Considere, por exemplo, a divindade implícita num romance best-seller ou nas baladas populares. Ainda assim, para aqueles que são formados para gostar desse tipo de deus, esse é o tipo de deus de que eles vão gostar. Existe uma hierarquia entre deuses e homens. Aqueles cujo lugar na hierarquia humana é baixo, adoram deuses cujo lugar na hierarquia divina correspondem ao seu. Os artistas-sacerdotes, que evocam deuses inferiores para veneradores inferiores, são eles próprios inferiores. Ainda assim, qualquer que seja a qualidade do deus evocado, o ato do artista é sempre sacramental. Ele realmente produz algum tipo de deus. Daí sua importância no mundo moderno. Seu nome está escrito em letras grandes nas páginas de “Quem é quem”; recepcionistas o convidam para jantar; escritores de fofocas relatam suas ações na imprensa; correspondentes desconhecidos escrevem para ele sobre suas almas e pedem cópias de sua fotografia; jovens estão dispostos de antemão a se apaixonar. Para o artista que gosta desse tipo de fama, o mundo moderno deve ser um verdadeiro paraíso. 

O padre é confessor assim como é um intérprete de mistérios. O artista pode fazer mudanças para desempenhar suas funções sacramentais, mas carece do tipo de treinamento e conhecimento que cabe a um homem ser um condutor da consciência. É ao advogado e ao médico que o sacerdote legou esta parte das suas funções. O médico, e especialmente o especialista em nervos, ocupa uma posição extraordinária em nosso mundo atual. Seu prestígio sempre foi alto, mesmo durante os períodos em que as doenças do Espírito eram consideradas como estando fora de sua jurisdição. Agora que o exorcista está extinto e o confessor uma raridade, agora que a psicoterapia se professa uma ciência e uma arte regular, o prestígio do médico dobrou. Sua posição no mundo moderno é quase a do curandeiro entre os primitivos.

Com o declínio do poder eclesiástico, a importância do advogado também aumentou. O procurador da família assume a responsabilidade indireta pelos atos de seus clientes. Ele é o destinatário de seus segredos mais íntimos; está dando-lhes conselhos não apenas legais, mas até morais. Os padres podem desaparecer; mas o número de pessoas que não gostam de responder por suas próprias ações não diminui. O Condutor da Consciência surgiu em resposta a uma necessidade humana genuína. Entre eles, médico e advogado preenchem seu lugar vago. 

A minha lista indica apenas os substitutos modernos da religião. Claro, é verdade que para todos nós a religião, ou um substituto dela, é necessária para a felicidade.

Alguns seres humanos são moldados de maneira que quase qualquer ideia pode assumir as qualidades de um dogma religioso. Uma condição de crença absoluta é alcançada; o próprio objeto de crença é dotado de caráter absoluto e, portanto, torna-se divino; agir de acordo com a crença, servir ao seu objeto endeusado, propagar a verdade e combater a falsa doutrina tornam-se deveres religiosos. Todos nós conhecemos resmungões e praticantes de hobbies. As suas excentricidades, a sua unilateralidade absurda e bárbara, devem-se ao fato de tratarem como se fosse uma religião uma ideia que nada têm em comum com um dogma religioso, exceto a sua qualidade (para eles) de absoluto. O processo pelo qual uma ideia adquire essa qualidade religiosa de absoluto não é o mesmo em todas as circunstâncias. Em alguns casos, o caráter absoluto de uma crença é proporcional ao tempo em que foi acreditada. As crenças recebidas na infância tendem a se tornar parte integrante da mente. Negar uma crença muito familiar – aquela que se tornou, por assim dizer, incrustada de associações pessoais e emaranhada nos sentimentos – é, em um sentido real, negar o homem que a possui. Mas não é exclusivamente pelo direito prescritivo de mera duração do tempo que as ideias se tornam absolutas. O excêntrico pode adquirir seu hobby relativamente tarde na vida. Além disso, muitas vezes acontece que os excêntricos percorrem vários obstáculos sucessivamente, tratando cada um deles como um dogma absoluto e religioso. Existe uma mente excêntrica reconhecível com uma tendência específica de receber crenças e dotá-las de qualidades absolutas. Conheci homens cuja religião era a homeopatia, outros cuja vida inteira foi constelada em torno da fé que se chama antivivissecção. A inadequação de tais idéias como substitutos dos dogmas abrangentes da religião é evidente.

Texto Original | https://archive.vanityfair.com/article/1927/11/modern-substitutes-for-religion
Sobre Aldous Huxley | https://pt.wikipedia.org/wiki/Aldous_Huxley

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